Outro dia fui ao médico e ele me perguntou se eu ando bastante a pé.
- Muito - respondi. -Pois então ande mais ainda.
O conselho é saudável, mas não sei como se possa andar com as calçadas e o leito das
ruas cheios de veículos, sem uma beiradinha para o infortunado pedestre. Fomos
definitivamente proscritos da cidade. E não temos para onde ir, pois o progresso
chega ao interior, com seu cortejo de máquinas, desde o automóvel até a carreta,
passando pela moto, a escavadeira, a britadeira e demais bichos mecânicos
incumbidos de obstar o alegre movimento das pernas. Estava pensando na
impraticabilidade da prescrição médica, e me pedir de volta o dinheiro da consulta,
quando meus olhos se abriram à notícia de que vai ser criada a Associação de
Pedestres do Rio de Janeiro, a exemplo da existente em São Paulo.
Aleluia! Se me dessem licença, gostaria de ser o primeiro associado inscrito, mas
receio que, ao se instalar a entidade, não tenha condições de chegar à sede, pelas
dificuldades do trânsito. Serei talvez associado telefônico ou postal, caso não me seja
negado o direito de ir da minha residência até a agência de correio mais próxima.
A associação, dizem-me, editará uma cartilha do pedestre, que me habilite a desfrutar
os direitos da minha condição. Talvez fosse judicioso editar simultaneamente a
cartilha do motorizado, para que esta faça a revisão de conceitos até agora
norteadores de seu comportamento. Assim, pelo menos reivindicaremos nossos
direitos específicos brandindo cartilhas em lugar de palavrões ou argumentos
baculinos. Vencerá quem melhor usar sua cartilha.
Apenas, temo que nós, pedestres, não tenhamos chance de tirar do bolso o folheto que
será a nossa Bíblia, também pedestre, pois a experiência comprova que o motorizado
não dá tempo para o confronto de princípios. Os princípios em geral são nossos, e a
rua é deles, senão a cidade inteira.
Sou ainda forçado a meditar na precariedade de uma associação que, como todas as
outras, reúne indivíduos e não santos de altar. A maioria esmagadora dos indivíduos,
como se sabe, aspira a ser qualquer coisa além do que é. Falamos mal do carro ou do
ônibus se ele ameaça atropelar-nos, mas bem que gostaríamos de ser donos de uma
traquitana ou de uma empresa de transportes. Evidentemente, é diverso o ponto-devista
de quem está dentro do veículo, com relação ao ponto de vista de quem está fora
- e a propriedade cultiva seus valores éticos distintos.
Imagina se eu, segundo secretário da Associação, me cansar da posição inconfortável
de pedestre e disputar o sorteio de um Chevette. E ganhar. Serei um traidor da classe
ou apenas um fraco mental exausto de pleitear uma vaga de transeunte, sempre
recusada?
O pedestre é, afinal, uma espécie que tende a desaparecer, se é que já não desapareceu
de todo, e eu estou aqui briquitando nestas teclas sem me dar conta de que também
sumi do mapa e sou apenas um fantasma do Segundo Reinado, que açambarcava o
espaço infinito de um Brasil sem desenvolvimento, quando o único veículo era o
cavalinho maneiro.
Já estava conformado com a etiqueta social de fantasma, quando leio que a
Associação de Pedestres de São Paulo é constituída de arquitetos, engenheiros,
economistas, pessoas indubitavelmente vivas e atuantes na vida brasileira de hoje, e
que a futura entidade carioca vem sendo organizada por um sociólogo. Então, nem
tudo está perdido, não sou o “revenant” que supunha ser, e devo admitir que ainda
existem pedestres, por sinal qualificados, e dispostos a defender seus direitos, de
maneira organizada e eficiente.
Fora de brincadeira: é criar e tocar pra frente, com ânimo e perseverança. Assim
como as associações de moradores de bairro vão conseguindo formar uma consciência
comunitária, sensibilizando as autoridades, pois se trata de uma força ascendente,
capaz de exercer pressão e comprovar a eficácia do apelo coletivo, uma associação de
pedestres, formando em comunhão de vistas com aquelas, cuidará daquilo que
interessa a todo o complexo urbano e pede tratamento especial.
Vamos trabalhar pela afirmação (ou reafirmação) da existência do pedestre, a mais
antiga qualificação humana do mundo. Da existência e dos direitos que lhe são
próprios, tão simples, tão naturais, e que se condensam num só: o direito de andar, de
ir e vir, previsto em todas as constituições... o mais humilde e o mais desprezado de
todos os direitos do homem. Com licença: queremos passar.
O conselho é saudável, mas não sei como se possa andar com as calçadas e o leito das
ruas cheios de veículos, sem uma beiradinha para o infortunado pedestre. Fomos
definitivamente proscritos da cidade. E não temos para onde ir, pois o progresso
chega ao interior, com seu cortejo de máquinas, desde o automóvel até a carreta,
passando pela moto, a escavadeira, a britadeira e demais bichos mecânicos
incumbidos de obstar o alegre movimento das pernas. Estava pensando na
impraticabilidade da prescrição médica, e me pedir de volta o dinheiro da consulta,
quando meus olhos se abriram à notícia de que vai ser criada a Associação de
Pedestres do Rio de Janeiro, a exemplo da existente em São Paulo.
Aleluia! Se me dessem licença, gostaria de ser o primeiro associado inscrito, mas
receio que, ao se instalar a entidade, não tenha condições de chegar à sede, pelas
dificuldades do trânsito. Serei talvez associado telefônico ou postal, caso não me seja
negado o direito de ir da minha residência até a agência de correio mais próxima.
A associação, dizem-me, editará uma cartilha do pedestre, que me habilite a desfrutar
os direitos da minha condição. Talvez fosse judicioso editar simultaneamente a
cartilha do motorizado, para que esta faça a revisão de conceitos até agora
norteadores de seu comportamento. Assim, pelo menos reivindicaremos nossos
direitos específicos brandindo cartilhas em lugar de palavrões ou argumentos
baculinos. Vencerá quem melhor usar sua cartilha.
Apenas, temo que nós, pedestres, não tenhamos chance de tirar do bolso o folheto que
será a nossa Bíblia, também pedestre, pois a experiência comprova que o motorizado
não dá tempo para o confronto de princípios. Os princípios em geral são nossos, e a
rua é deles, senão a cidade inteira.
Sou ainda forçado a meditar na precariedade de uma associação que, como todas as
outras, reúne indivíduos e não santos de altar. A maioria esmagadora dos indivíduos,
como se sabe, aspira a ser qualquer coisa além do que é. Falamos mal do carro ou do
ônibus se ele ameaça atropelar-nos, mas bem que gostaríamos de ser donos de uma
traquitana ou de uma empresa de transportes. Evidentemente, é diverso o ponto-devista
de quem está dentro do veículo, com relação ao ponto de vista de quem está fora
- e a propriedade cultiva seus valores éticos distintos.
Imagina se eu, segundo secretário da Associação, me cansar da posição inconfortável
de pedestre e disputar o sorteio de um Chevette. E ganhar. Serei um traidor da classe
ou apenas um fraco mental exausto de pleitear uma vaga de transeunte, sempre
recusada?
O pedestre é, afinal, uma espécie que tende a desaparecer, se é que já não desapareceu
de todo, e eu estou aqui briquitando nestas teclas sem me dar conta de que também
sumi do mapa e sou apenas um fantasma do Segundo Reinado, que açambarcava o
espaço infinito de um Brasil sem desenvolvimento, quando o único veículo era o
cavalinho maneiro.
Já estava conformado com a etiqueta social de fantasma, quando leio que a
Associação de Pedestres de São Paulo é constituída de arquitetos, engenheiros,
economistas, pessoas indubitavelmente vivas e atuantes na vida brasileira de hoje, e
que a futura entidade carioca vem sendo organizada por um sociólogo. Então, nem
tudo está perdido, não sou o “revenant” que supunha ser, e devo admitir que ainda
existem pedestres, por sinal qualificados, e dispostos a defender seus direitos, de
maneira organizada e eficiente.
Fora de brincadeira: é criar e tocar pra frente, com ânimo e perseverança. Assim
como as associações de moradores de bairro vão conseguindo formar uma consciência
comunitária, sensibilizando as autoridades, pois se trata de uma força ascendente,
capaz de exercer pressão e comprovar a eficácia do apelo coletivo, uma associação de
pedestres, formando em comunhão de vistas com aquelas, cuidará daquilo que
interessa a todo o complexo urbano e pede tratamento especial.
Vamos trabalhar pela afirmação (ou reafirmação) da existência do pedestre, a mais
antiga qualificação humana do mundo. Da existência e dos direitos que lhe são
próprios, tão simples, tão naturais, e que se condensam num só: o direito de andar, de
ir e vir, previsto em todas as constituições... o mais humilde e o mais desprezado de
todos os direitos do homem. Com licença: queremos passar.
(Publicada em Jornal do Brasil de 9/5/82-Domingo
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