No campo político a canalhice se apresenta de
forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o político que faz um
duro discurso punitivo, que propala aos quatro ventos a festa da
vingança, com o único propósito de manipular a vontade da opinião
pública, muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de
ver outras pessoas castigadas.
Vamos ao imperdível texto de Juan Pablo Mollo (O delinquente que não existe, no prelo), observando-se que tudo que está entre colchetes é de minha autoria:
“O canalha é aquele que, sabendo captar
as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce promessas, ameaças
ou expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais
consegue o consentimento e a cumplicidade do outro. Por isto, propõe-se
como um líder nato para hipnotizar ao neurótico vacilante, que
prontamente se converterá religiosamente ao regime do psicopata e suas
ambições pessoais. Sem dúvida, o canalha não faz a cooptação de
voluntários repressivamente, mas com seu carisma e capacidade de
persuasão atrás de seus pretextos discursivos variáveis. O canalha
bem-feito não crê em nenhum ordenamento social ou cultural e consegue
uma postura de certeza para conseguir sua própria satisfação à custa dos
outros”.
“Um canalha que sempre encontra
justificações para seus atos, sem culpa nem responsabilidade alguma,
pode ser perfeitamente compatível com a normalidade social, a política e
o poder. Torna-se frequente que o canalha se mascare atrás de uma
autoridade em que não crê, e a partir daí comece a exercer uma
influência sobre o outro[...[ A respeito, pode se distinguir o pequeno e
ambicioso canalha imerso numa lógica de êxito e fracasso de um canalha
maior que, sobre o império e destruição do desejo próprio e alheio,
estrutura-se no exercício do poder para manejar as realidades dos
outros. O perfeito grande canalha é um poderoso como Stalin, o homem de
aço, intocável, fechado em si mesmo, sem escrúpulos nem decência, sem
vacilação nem defeito em vida [nessa mesma linha está Hitler]. O
esplendor do canalha e seu brilho maléfico provêm de não aceitar nem o
Outro com maiúsculas, que não é mais que uma ficção, nem os outros
semelhantes, que não valem nada”.
“Assim, o canalha de nossos dias é o
líder de organizações criminosas cuja atitude é introvertida, misteriosa
e planejada. Portanto, não é o delinquente comum que rouba o automóvel,
mas o administrador do desmanche e do dinheiro daqueles que trabalham
para ele ou o delegado de polícia corrupto que manipula o delinquente a
partir da autoridade estatal. A pessoa de colarinho branco oculta detrás
dos ilícitos é o psicopata que não age, senão que faz agir os demais
[como se vê, o delinquente comum não é o canalha que está por detrás da
organização, que manipula a vontade dos outros]”.
“Por outro lado, ofuscado pela ambição,
o político corrupto não deixa de camuflar-se nos governos democráticos,
nem de delinquir, nem de fingir ser um homem trabalhador e honesto para
aprisionar o desejo dos outros. O psicopata de nossos dias é compatível
com a figura do homem de negócios, o homem mundano, o cientista, o juiz
ou o psiquiatra: sua fachada é normal, porém é a típica máscara do
psicopata. A máscara vela o interesse particular oculto. Assim, atrás
das sublimes frases ideológicas do líder político, da demonstração
objetiva do especialista ou da hipnose grupal do pastor, ocultam-se os
interesses ególatras, a violência e as brutais pretensões do poder. O
psicopata político, o homem do poder ou o narcotraficante extraem um
ganho pessoal sobre o sacrifício dos demais”.
“Em suma, e para além das figurações, o
psicopata ou canalha é aquele que sabe que o Outro da lei é um
semblante e não se detém na manipulação dos outros, nem em seus
interesses, ambições ou ações de prazer (Lacan). Um canalha bem-feito
realiza suas ações sem sustentar-se em nenhum ideal e sem impedimentos,
isto é, não se situa como sujeito de nenhuma lei ou posicionado como
culpado/culpável, mas que avança sem obstáculos nem inibições para sua
condição absoluta de prazer. É aquele indivíduo que, independentemente
de qualquer distinção social, pretende existir por fora de toda lei ou
norma, na que não crê, exceto quando ocupa um lugar de poder e impõe as
regras para os demais”.
“Então, a grande canalhice é a ciência
estabelecida totalmente como verdade pelo mercado multinacional,
captando o desejo de todos e propondo-se como o novo chefe globalizado
sob a forma tecnológica. E não parece existir alguma política que
apresente as condições para estabelecer um limite ao desencadeamento da
tecnociência e o sistema avaliativo na construção da realidade. Por
outro lado, existe a canalhice filosófica como um saber sistemático que
se propõe como verdadeira para os demais, e também a canalhice
jurídico-penal, que mediante intelectualizações acadêmicas sobre a pena
tem ocultado desde sempre a irracionalidade do poder punitivo para
sustentar uma ordem desigual e injusta”.
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito.com.br.